Quem morou na Bahia não escapa dessa. O sujeito põe pra rodar no carro um disco
de samba - Paulino da Viola, Bete Carvalho, Zeca Pagodinho, Almir Guineto e
tudo o mais que você possa imaginar. Lá pelas tantas, a turma já meio
embaladinha, você cai na besteira de dizer: "Que samba espetacular. Que
coisa linda. Se o Rio de Janeiro não fosse a beleza que é e só nos tivesse nos
dado o samba, já teria valido a pena!". Pronto! Você acabou de pronunciar
a frase errada na Bahia. Vocês quis elogiar o samba, meu caro amigo, minha cara
amiga, e acabou ofendendo o baiano com quem conversa animadamente. "Venha
cá! Ouça bem", dirá o seu companheiro baiano. "A coisa não é bem
assim. Você é um grande cara, gosto muito de você, mas veja, veja, você é de
Santa Catarina, e não conhece bem a história do samba!". Sim, o baiano
amigo lhe dirá assim, com muita educação e calma, que você é um ignorante,
"pois o samba, meu filho, não nasceu naquela porra de Rio de Janeiro coisa
nenhuma. O samba nasceu na Bahia!". E aí, já se adiantando à sua possível
contestação, invocará o baiano a autoridade indiscutivel de Vinícius de Moraes
na matéria: "... pois o samba nasceu lá na Bahia e, se hoje ele é branco
na poesia, ele é negro demais no coração".
Tá bom, o samba nasceu na Bahia. Isso está fora de cogitação. Mas o samba, tal como o conhecemos hoje, é um produto tipicamente carioca. O pagode legítimo, aquela música nascida em rodas de samba, aquilo tem a marca registrada do Rio de Janeiro. Sem falar, obviamente, dos sambas mais "sérios", que esses são insuperáveis em qualidade. O chamado "samba de raiz" não existe tão bonito em outro lugar que não a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Eu sei, você sabe, o Brasil sabe, o mundo sabe e, por incrível que pareça, os baianos também sabem. E tanto sabem a quinta-feira de carnaval é dedicada ao "samba de raiz", com desfiles monstruosos de sambistas de nome no Campo Grande. Quem são os sambistas convidados? Sim, os cariocas.
E São Paulo? Os paulistas/paulistanos não têm, com os baianos, aquela frase do Vinícius a lhes apoiar. Mas eles insistem em dizer que lá é terra de grandes sambistas. A história não lhes ajuda muito. O maior sambista paulista é Adoniran Barbosa, que era do Braz, um bairro de origem italiana, e que fazia suas genias letras em "dialeto". Ficou na história como grande sambista, merecidamente, e, coisa rara, compunha sem saber tocar um instrumento sequer. Seu instrumento era uma caixinha "fósfere" ou "frósfi".
Recebemos, calorosamente, em Siderópolis, ali em meados dos anos 90, uns "imigrantes" paulistas, entre os quais se encontrava o meu grande amigo Marinho Romão. Ele, o Mário, veio trazido pelo Deja, para que ajudasse a montar a escola de samba "Imperatriz Bellunense" e, função mais que nobre, compusesse os sambas-enredo. Fez vários, mas um tornou-se um clássico: "vou voando/ vou para o céu/ como a vida sempre quis/ num véu/ num raio de luz/nas asas da Imperatriz". Se eu errei alguma parte da letra, o Marinho me corrigirá. Marinho ficou famoso como compositor e pôde desfrutar de sua fama em Siderópolis e em toda a região.
Mas quando Marinho chegou, ele ainda não era o compositor que veio a ser conhecido depois. Ele era um paulista/paulistano que estava chegando para "fazer samba". Para nós ele era um "projeto de compositor", cuja qualidade ia ser avaliada no momento próprio, assim que os sambas fossem saindo. Então, quando o Marinho chegou, ele era apenas um "tocador de samba" e, nessa qualidade, frequentava as rodas promovidas pelo Kika. Eu já conhecia o Marinho, mas não tinha intimidade com ele para, digamos assim, maiores bricadeiras. No início dos anos 90, São Paulo inventou uma coisa horrível, a que deram o nome de "pagode". Aquilo sumiu, graças a Deus. Em um belo dia de festividades sambísticas (eu morava em Criciúma nessa época e, portanto, estava sempre em Siderópolis), o Kika pára de tocar e passa o violão para o Marinho, que timidamente recebe o instrumento e se prepara para uma execução. Antes que ele começasse, o metido aqui, sem mais nem menos, larga essa frase para lá de constrangedora: "Tu não vais tocar pagode, né?".
Estive em Siderópolis recentemente. O Marinho me contou essa história, que eu, sinceramente, não lembrava. Disse-me que aquilo lhe causou um trauma. Ele recém-chegado, pega o violão e recebe uma advertência - quase uma ordem - para que não tocasse pagode! E de um cara que mal conhecia, de modo que ele ficou sem saber se era uma brincadeira ou se eu estava falando sério.
Um trauma! A consequência do trauma é que Marinho não pode se defrontar com o pagode, hoje em dia, sem que lhe venha uma sensação de raiva. Ou ele toca pagode paulista sem parar para se vingar de mim ou ele não toca e, como não toca achando que é por causa de mim, também fica com raiva. Eu tentei explicar ao Marinho que a frase infeliz era só uma brincadeira. Mas você sabe como são essas coisas da mente... Trauma é trauma. Se o Marinho não superar essa problema, se ele não virar a página, mais cedo ou mais tarde terá que consultar um médico. Por isso, estou fazendo uma poupança. Se o trauma persistir, a única coisa que posso fazer para me redimir é ajudar a pagar o analista.
Tá bom, o samba nasceu na Bahia. Isso está fora de cogitação. Mas o samba, tal como o conhecemos hoje, é um produto tipicamente carioca. O pagode legítimo, aquela música nascida em rodas de samba, aquilo tem a marca registrada do Rio de Janeiro. Sem falar, obviamente, dos sambas mais "sérios", que esses são insuperáveis em qualidade. O chamado "samba de raiz" não existe tão bonito em outro lugar que não a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Eu sei, você sabe, o Brasil sabe, o mundo sabe e, por incrível que pareça, os baianos também sabem. E tanto sabem a quinta-feira de carnaval é dedicada ao "samba de raiz", com desfiles monstruosos de sambistas de nome no Campo Grande. Quem são os sambistas convidados? Sim, os cariocas.
E São Paulo? Os paulistas/paulistanos não têm, com os baianos, aquela frase do Vinícius a lhes apoiar. Mas eles insistem em dizer que lá é terra de grandes sambistas. A história não lhes ajuda muito. O maior sambista paulista é Adoniran Barbosa, que era do Braz, um bairro de origem italiana, e que fazia suas genias letras em "dialeto". Ficou na história como grande sambista, merecidamente, e, coisa rara, compunha sem saber tocar um instrumento sequer. Seu instrumento era uma caixinha "fósfere" ou "frósfi".
Recebemos, calorosamente, em Siderópolis, ali em meados dos anos 90, uns "imigrantes" paulistas, entre os quais se encontrava o meu grande amigo Marinho Romão. Ele, o Mário, veio trazido pelo Deja, para que ajudasse a montar a escola de samba "Imperatriz Bellunense" e, função mais que nobre, compusesse os sambas-enredo. Fez vários, mas um tornou-se um clássico: "vou voando/ vou para o céu/ como a vida sempre quis/ num véu/ num raio de luz/nas asas da Imperatriz". Se eu errei alguma parte da letra, o Marinho me corrigirá. Marinho ficou famoso como compositor e pôde desfrutar de sua fama em Siderópolis e em toda a região.
Mas quando Marinho chegou, ele ainda não era o compositor que veio a ser conhecido depois. Ele era um paulista/paulistano que estava chegando para "fazer samba". Para nós ele era um "projeto de compositor", cuja qualidade ia ser avaliada no momento próprio, assim que os sambas fossem saindo. Então, quando o Marinho chegou, ele era apenas um "tocador de samba" e, nessa qualidade, frequentava as rodas promovidas pelo Kika. Eu já conhecia o Marinho, mas não tinha intimidade com ele para, digamos assim, maiores bricadeiras. No início dos anos 90, São Paulo inventou uma coisa horrível, a que deram o nome de "pagode". Aquilo sumiu, graças a Deus. Em um belo dia de festividades sambísticas (eu morava em Criciúma nessa época e, portanto, estava sempre em Siderópolis), o Kika pára de tocar e passa o violão para o Marinho, que timidamente recebe o instrumento e se prepara para uma execução. Antes que ele começasse, o metido aqui, sem mais nem menos, larga essa frase para lá de constrangedora: "Tu não vais tocar pagode, né?".
Estive em Siderópolis recentemente. O Marinho me contou essa história, que eu, sinceramente, não lembrava. Disse-me que aquilo lhe causou um trauma. Ele recém-chegado, pega o violão e recebe uma advertência - quase uma ordem - para que não tocasse pagode! E de um cara que mal conhecia, de modo que ele ficou sem saber se era uma brincadeira ou se eu estava falando sério.
Um trauma! A consequência do trauma é que Marinho não pode se defrontar com o pagode, hoje em dia, sem que lhe venha uma sensação de raiva. Ou ele toca pagode paulista sem parar para se vingar de mim ou ele não toca e, como não toca achando que é por causa de mim, também fica com raiva. Eu tentei explicar ao Marinho que a frase infeliz era só uma brincadeira. Mas você sabe como são essas coisas da mente... Trauma é trauma. Se o Marinho não superar essa problema, se ele não virar a página, mais cedo ou mais tarde terá que consultar um médico. Por isso, estou fazendo uma poupança. Se o trauma persistir, a única coisa que posso fazer para me redimir é ajudar a pagar o analista.
Murilo Mendes
Sinop - MT, 02 de outubro de 2.012.